A verdade é que pouco dormi. Carrego na cabeça o peso da consciência das coisas adormecidas. Para ser mais rigorosa, teria que dizer “dormentes” em vez de adormecidas.
É o facto de não as conseguir embalar que me desperta.
Não é a primeira noite que dormimos juntos, mas é oficialmente a primeira noite em que moramos juntos.
Quando era pequenina, tinha esta mesma impressão — a de não saber habitar os momentos que eu própria arquitectava e consumava. Uma birra entre o assalto do subconsciente, o erro presente, o sonho feito realidade, o pesadelo do arrependimento e o medo.
Há uma parte em nós que nunca envelhece.
Não é criança, nem adulta, é um depósito humano de enigmas emocionais, que precisava de vidas repetidas para não se repetir.
Abri os olhos de madrugada, à espera do convite da luz.
Estava tudo escuro. Ele dormia ao meu lado.
É uma sorte acordar ao lado de quem se ama.
Não quero que pensem que desmazelo nisso.
Queria tocar-lhe, mas não o queria acordar. Dar-lhe o mimo concreto que não tocava ao compasso da minha respiração.
Enrolei-me para o lado direito da cama, depois para o lado esquerdo.
Estiquei os dedos dos pés para tocar nos dele. Precisava da confirmação do calor. Ou uma confirmação qualquer que fizesse do sono uma certeza.
A ventoinha rodava, mais lenta que os meus pensamentos. Sabia que a fechadura do quarto novo é dura, tão dura como a tomada de consciência de que tinha que me levantar, que o corpo cansado estava ao comando de uma cabeça erguida. Acho que era um pesadelo.
Mas dizem que o ante-sala da madrugada traz evidências ao sono, pensamentos para sentir.
Retraíste os pés, depois as pernas e afastaste o corpo de mim.
Fiquei em suspenso, naquela apneia emocional que conduz o choro.
Caíram-me umas lágrimas.
Não estava triste, estava só um bocadinho aflita. Da porta do quarto à cozinha, ainda teria que passar pela casa de banho para aliviar o xixi.
A porta da casa de banho range, as lágrimas escorrem, a maçaneta é dura e eles todos dormem.
Já não são horas de beber vinho ou ainda não são horas.
O tempo é um filho da mãe que nos massacra.
Ainda não sei bem o que me faz chorar.
Penso que haverá tempo para conquistar ao espaço, um espaço meu.
Sinto-me meio intrusa.
A ladra afeiçoada, convidada a pernoitar.
Lá tenho eu, novamente, a mala aberta com roupa a esventrar-se no corredor.
Tantos sacos apinhados que não consigo chegar ao armário e a incógnita de não saber com precisão o que lá tenho dentro.
Eu estava convencida de que queria ir buscar coisas cuja necessidade não identifico.
Dir-te-ia a psicologia alheia que o que precisas são vias desobstruídas e que ainda te sentes a tropeçar. Que te reconheces no esforço de tornar a nova casa ninho, mas que talvez a tenhas desenhado pequena demais para o perímetro das tuas asas. Ou que ainda não concebes na sua arquitectura a orgânica das tuas dores e um espaço oxigenado para puderes crescer.
Olhas com inveja as plantas que crescem.
Mas tu não estás a minguar, nem precisas de água.
Relembro que é tarde ou cedo para vinho.
Se lhe contares, talvez pense que imaginas fugir.
Mas a ideia não te consola, quando a realidade confirma que há mais ferrugem nas entradas do que óleo nas saídas.
Depois respiras. Já não fazias isso há algum tempo.
Em bicos de pés, alcanças a sala.
A janela oferece-te um quadro. O céu é um fogo para gente acordada.
Deixas cair mais umas lágrimas e tiras uma fotografia.
Nada se parece com o que se vive.
Sentes-te novamente ingrata. Pensas.
A honestidade não é uma artéria; é uma veia. É de bom coração que lhe fales dos medos que tens. Se não são medos, fala-lhe ao menos da insónia, que acordaste aflita, emparedada. Pede-lhe ajuda para decifrar.
Dissemos um milhão de vezes, de nós para nós, que há uma beleza singular na emoção que é traduzida a dois.
Uma coisa é uma casa limpa; outra, é uma pessoa arrumada.
E sim, há noites inteiras em que se acumulam pós.
Uma anarquia emocional com o propósito de formar governo.
É falar. Assim como tu escreves.
Descalça, nas traseiras da cozinha, enquanto vais bebendo com a língua os depósitos de açúcar acumulados no café frio.
Não te perguntes coisas que não sabes responder.
Do que tens medo?
Se estás ou não estás feliz?
Nada é tão óbvio, nem tão complexo, que mereça um pontapé para escancarar.
Com jeitinho, a porta abre.
Dizem que é preciso tempo para lhe ganharmos o engenho.
Não há dolo, que o que se queira, não se viva exactamente como se pensou.
Entretanto, crescemos e acordamos.
Há quase uma resolução activa na força com que bates as teclas e já sentes o despontar de um apetite.
Onde há fome, há esperança.
Não comas já tudo: a sopa da insónia, a entrada de lágrimas e o prato das emoções frias.
Vou esperar por ti para o pequeno-almoço.
Quero que percebas a fome que tenho de nós.
Isabel Saldanha
espetacular
Adoro a sua escrita, a forma como capta o q às vezes sinto e não consigo descrever. Uma escrita belíssima, em que nos deixamos levar e sentimos empatia. Que bom haver alguém que consegue fazer isto! Parabéns!!