O meu pai era um cabrão. Podia dizer foi. Mas era mentira e desmazelo, porque não se foi. E sendo, continuará a sê-lo. Sei que não fica bem falar assim de um familiar. Só mesmo se ele não for assim tão familiar, mas nesse caso não seria um pai, o pai de alguém que não conheço, ou que conhecendo não me é chegado.
Queria muito que esse cabrão tivesse sido pai de outro alguém. Com as propriedades miraculosas que reconheço ao trauma, podia até ser lhe grata pela forma como mecanizou as arestas da minha alma, não há canto que não dobre em mim.
Obrigada pai.
Um cabrão faz sempre das suas.
Hoje sei, que fui uma das que fizestes, dessas asneiras de prazer feita pessoa humana.
Só que elas crescem, do redondo nascem bicos, ângulos, dos papos sulcam ossos, até o cérebro tão acessível se esconde, num mato denso de cabelos soltos e sonhos espigados. Dentro de um coração geométrico, lá bem dentro, há um coração redondo.
Tão blindado que eu própria tenho que recorrer a meios técnicos para o conseguir ouvir. Sei que existe, porque nele penetram coisas. Não sei por onde entram, porque não volto a extrair.
Uma coisa eu sei, desde menina, que amo muito de dentro de mim.
Isabel Saldanha
"My father was a bastard. I could say he was. But that would be a lie and negligence, because he hasn't gone anywhere. And being so, he will continue to be. I know it's not proper to speak this way about a family member. Only if he isn't all that familiar, but in that case, he wouldn't be a father, the father of someone I don't know, or knowing them, they are not close to me.
I really wish that bastard had been someone else's father. With the miraculous properties I recognize in trauma, I might even be thankful for the way he mechanized the edges of my soul, there isn’t a corner that doesn’t bend in me.
Thank you, dad.
A bastard always does his thing.
Today I know that I was one of those you made, those blunders of pleasure made human.
But they grow, from roundness come points, angles, from bulges sculpt bones, even the so accessible brain hides, in a thicket of loose hair and sharp dreams. Inside a geometric heart, deep within, there is a round heart.
So armored that I myself have to resort to technical means to be able to hear it. I know it exists, because things penetrate it. I don’t know how they enter, because I don’t extract them again.
One thing I know, since I was a girl, that I love very much from within me.
Isabel Saldanha
♥️
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