Ele dizia que eu caía, mas que caía sempre em pé. E houve um dia em que ele se esqueceu de mim num buraco, e eu nunca mais me levantei.
Toda a gente espera que tu te recomponhas.
Que feches a ferida num prazo decente, que digas “já passou” com a serenidade de quem aprendeu. Mas há dores que não têm calendário. Há amores que não respeitam o protocolo da amnistia emocional.
Primeiro há o tempo em que falas. Em que contas a história às amigas, ao terapeuta, aos terapeutas, a quem tiver paciência para te ouvir. Achas que se repetires o enredo vezes suficientes, ele se dissolve. Mas depois chega o momento em que percebes que esgotaste o crédito da compaixão. E então calas.
Não porque tenhas esquecido — mas porque te convenceram de que não tens mais direito de lembrar.
E no silêncio, o amor não morre. Engorda. Cresce à socapa dos dias. Incha no peito como uma criança abandonada, que só quer ser vista mais uma vez. Os outros acham que não falar é sinónimo de cura. Não percebem que o pedido de silêncio não respeita aquilo que ainda tens para limpar. Que não vomitar a última mágoa não te torna mais digna — só te entope a garganta com palavras.
E depois há essa ideia cómoda de que o tempo cura tudo. Mas o tempo cura no ritmo que convém a quem não está dentro do teu corpo. Para uns, bastam meses. Para outros, uma vida inteira não chega. E há amores que não morrem: morrem connosco. Só se libertam no instante do último sopro.
Talvez o mais injusto seja que ninguém te permita a última palavra. Como se houvesse uma data limite para a memória. Como se já não fosses autorizada a sentir, a recordar, a chorar por dentro.
Mas tu sabes. Sabes que há lembranças que não impedem a vida — só não consentem o esquecimento.
Que a saudade pode coexistir com o riso, com o trabalho, com os outros amores. E que tens o direito de falar dela, mesmo quando já ninguém tem paciência para escutar.
Porque há vírgulas que não pertencem a mais ninguém. E há histórias que só terminam quando decidimos largá-las. Ou quando elas, finalmente, nos largam.
Mas tu sabes. Sabes que há lembranças que não impedem a vida — só não consentem o esquecimento. Que a saudade pode coexistir com o riso, com os ponteiros e com todos os outros amores que vierem depois.
E sabes também que ninguém tem direito de te confiscar a última palavra. Que há uma dignidade secreta no insistir em lembrar, no repetir baixinho um nome que já não cabe no mundo dos vivos.
Porque há vírgulas, que não pertencem a mais ninguém. Há histórias que não acabam na versão oficial dos factos. E há coisas — poucas, mas há — que não se decompõem ao ritmo dos dias.
São essas que ficam.
Ficam, como um animal adormecido num canto do peito, respirando muito devagar, só para não morrer de todo.
Ficam, como uma frase interrompida que ninguém tem coragem de acabar.
Ficam, porque talvez só se libertem no instante sem nome em que o corpo descola do corpo, e já não há mais ninguém a vigiar o que é permitido sentir.
E se um dia for preciso inventar um alfabeto novo para dizer tudo o que sobrou, que assim seja.
Porque há amores que não foram feitos para caber no entendimento.
Foram feitos só para ser, não sendo nunca — até ao último silêncio
.
Gostei muito.
Fez-me lembrar o Mary John, um livro para adolescentes (ou para quem adolesce de vez em quando) da Ana Pessoa.
Lembrei-me do final do livro quando a Mary olha para o seu antigo tão grande amor e, interiormente, diz com espanto: já foste!
Esse momento maravilhoso, de alívio e espanto, não pode ser ditado por ninguém, nem mesmo decidido por nós. Simplesmente um dia acontece.
Segue o Amor ❤️⚓