Encolho os ombros e digo de mim, para mim:
- Não ando muito feliz.
Podia não ser tão preocupante, se não fosse a quimera de um homem, procurar ser alegre todos os dias.
Já tentei ordenar a tristeza, fazer uma acordo, ceder-lhe o fim de semana a troco dos restantes dias. Ofereci-lhe domingos cheios de petisco e sol, dei-lhe de beber dos melhores vinhos, orgasmos quase todas as manhãs.
É como aquelas sogras da novela brasileira que aparece todos os dias no quintal, para perguntar como é que está o filho.
Às vezes, finto-a com aquelas respirações densas, que chamam tudo o que há de espiritual em nós.Ela fica tonta. Não gosta.
Mas eu também não.
Perdi o jeitinho para a alienação.
Leio muito e depressa. Às vezes ela também se perde nos parágrafos de um livro. Deve ficar como eu, embevecida pela tristeza de outras histórias, até se perceber altiva, até requisitar vaidade e lembrar-se outra vez, que para ser tristeza, não pode parar de ser triste.
A filha da mãe, permite-me que feche o livro, deixa-me respirar, entre as garfadas das histórias dos outros e da minha história, mas não me deixa fazer a curva, assalta-me, manda-me ficar quieta e soletra-me de cor aquele parágrafo triste, que faz o par de dança perfeito com o meu infortúnio
Outra coisa que me lixa, e eventualmente me envelhece, é a forma como se insinua nas madrugadas, fodendo-me incontáveis madrugadas, de olhos ardentes, incapazes de se pronunciarem em lágrimas, pela ausência da consciência de que já se encontram acordados.
Peço-lhe clemência. Que me deixe dormir, que venha comigo, que se faça pesadelo terrível. Acedo a acordar a chorar.
Mas ela nunca me deixa desesperar, porque isso implica deixar de ficar triste. Percebo que seja bem remunerada. Tem sido a cozinheira dos meus dias. Nunca abandona o serviço a meio, serve sempre tudo quente.
É tão atenta e perspicaz. Deixa cozer mas nunca deixa queimar.
É de tal forma diligente, que está sempre a inventar novas formas de refogar a história, para que o hospedeiro, não perca hipótese de chorar sob todas as perspectivas.
No outro dia andei feliz, e só percebi porque não estava triste. Se não tivesse notado, ela tinha-me dado descanso
Acordo-a sempre para mim.
Já fomos amigas. Escrevemos poesia juntas. Tenho a certeza que a vi bebericar do meu copo de tinto. Senti-a a encostar-se ao meu peito, a expandi-lo num abraço, para que não me achasse nunca pequena para as coisas que estava prestes a sentir.
Mas quando pressentes que ela te acompanha, que se aninha e se adivinha, deixas-te ir na vertigem daquele semi apagão, que são os olhos enlameados e a alma a meia haste, e ela…
…Sacode-te, some e apaga o que sobra de luzes.
Dá-te o pleno da escuridão, obriga-te a secar as lágrimas com os dedos, a fungar os corrimentos da tristeza, endireita-te as costas moldadas ao cadeirão e torna-se incomportável manter os joelhos unidos ao coração, porque o peito dilatou de tal forma, que precisas de ter espaço para não explodir com o embrulho.
Um dia escrevi que tinha pena da tristeza.
Porque além de ser sempre triste, toda a gente a empurra para onde pode.
Quase ninguém a tenta compreender, quando é ela que nos permite perceber quase tudo.
Foi proscrita por uma humanidade absurda, que só aceita emoções felizes.
Se já ninguém sabe estar doente, menos ainda triste.
Maltratada por todos, nas lhe resta mais nada, senão aprender a ser ainda mais triste.
Está cavado o fosso entre a angústia dos homens e as suas resoluções.
Destruímos as pontes que nos permitiam atravessar de um lado ao outro de nós.
E o meio — esse meio virtuoso — tornou-se a derrocada perfeita entre a lama do homem e as vontades da alma.
Porque raio não entendemos que é o sal das lágrimas o antídoto que nos limpa o chão?
Suspeito que ela não tenha gostado daquele ensaio em que lhe dei tréguas.
Desde então, tenho duas sombras.
E resta-me esperar que outro alma aflita lhe dedique um tributo mais generoso, para que me abandone.
Também penso demais.
Tenho a certeza que a filha da mãe se alimenta disso.
Nunca vi tristeza engordar em copos vazios.
O maluco do Bukowski disse:
“A tristeza é causada pela inteligência. Quanto mais entendes, mais gostarias de não compreender.”
A Bíblia também deixa o aviso:
“Aumenta o conhecimento e aumentarás o aborrecimento.”
Há um consolo perverso nisto:
A propensão para a tristeza tem raiz na nobreza dos pensamentos mais fundos.
A mesma fonte que ilumina, também escurece.
“Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso.”
Digo que se fosse mais simples teria menos tristezas.
Mas minto.
Mas depois, seria incapaz de me deleitar no coração de um homem grande, encarcerar-me dentro de um livro, deleitar-me na espuma das grandes metáforas, comover-me na pequenez de um poema que te diz tudo, com tão pouco, como?
Incapaz de sentir nas veias os acordes de um piano triste, ou pressentir na singularidade de um olhar, a densidade de um carácter, olhar para as árvores e ver enciclopédias verdes, dançando há anos nas flutuações do vento, espectadoras dos nossos desaires, oxigénio para as nossas convulsões. Como?
Que maldição será maior, a de assumir que há capítulos no livro da vida que a tristeza comanda, ou abandonares-te à vulgaridade de uma corrente de ar, vivendo só de ser sacudido?
Vamos todos preferir a inteligência. Mas não é opção que se faça, é opção que se tem.
A tristeza tem esse dom, que o amor desdenha.
A tristeza é quem estica os lençóis à noite para a inteligência planar. Fazem conchicha, trocam segredos, afagam-se, fazem tertúlias, só para adubar as dúvidas, conspiram nas concavidades da alma, produzem interruptores próprios que fazem pequenas faíscas na escuridão.
A tristeza adora uma mente inquieta.
É como dirigir uma orquestra com músicos insubmissos.
Improvisa em qualquer lugar.
A inteligência fabrica perguntas.
E ela aproveita.
A inteligência tem uma certa vaidade no conhecimento, e tendo interlocutor, anima-se, anui com a cabeça pesada, pede-lhe que não pare, que lance, que a invada, que a penetre: Por amor de Deus, pergunta-me tudo, mas não pares!
Dizem que o amor anula a razão.
Que não precisa dela para se convencer.
No verdadeiro amor não há forretas.
É tudo dar.
Eu sei que estamos a cascar na tristeza…
Mas o amor é outro cabrão.
Vai directo ao escalpe das emoções.
Arrepanha tudo.
Confisca a lucidez.
E espeta-te a adrenalina só para te lembrar que loucos são os que amam.
Mas não são os loucos desgraçados, que se atrapalham com a sua própria loucura, maltrapilhos e indigentes. Desses que andam de calças largas a fazerem as bainhas em farripas na gravilha das ruas. Nem os que andam a cantar a vida em gargalos de garrafas, em busca da última gota de emoção. Não são pobres. São os loucos com classe, os que abrem mão das emoções burguesas e decidem tudo a favor do amor. Que escolhem a casa debaixo da ponte, contando que haja uma vela, um jarro e uma flor. Desses loucos, toda a gente tem inveja.
São prisioneiros.
Mas dizem que por vontade não conta.
Não é toa que quando estamos tristes, nada provoca mais embaraço que o enlace dos amantes, excluídos que estamos de todos os abraços.
Não há argumento contra um coração rendido.
Pode vir o coro dos sensatos, as infusões de tília, os conselhos dos que sabem.
O amor não vai em cantigas…
E quando falha…
Quando quebra…
Quando entra em falência —
A tristeza é o primeiro credor a chegar.
A inteligência, essa bastarda, infiltra-se nas frinchas.
Perfura.Drena a razão.
E de repente, tudo o que queríamos era um lugar onde arquivar este excesso de lucidez,
um balcão qualquer onde se pudesse apresentar queixa
por tristeza reincidente,
por abuso de pensamento,
por dano emocional continuado.
Mas não há instância superior.
A tristeza tem imunidade.
A inteligência, cláusulas de excepção.
E o amor… o amor ignora notificações.
Ficamos nós, no rescaldo.
A fazer inventário com o que sobra,
a tentar, todos os dias, ser felizes
como quem tenta ser pontual
num mundo onde já ninguém sabe o que é um relógio.
E é neste descompasso que seguimos.
Entre a alma que quer sentir tudo
e o corpo que só pede trégua.
Com a tristeza a cozinhar de madrugada,
a inteligência a fazer horas extra,
e o amor, esse cabrão,
a prometer voltar
quando já não houver ninguém à espera.
Tic tac,
Isabel Saldanha
ENGLISH VERSION
I shrug my shoulders and say to myself,
— I'm not feeling very happy.
It wouldn’t be so worrying if it weren’t for man’s delusion of needing to be cheerful every single day.
I’ve tried to negotiate with sadness. I offered her the weekends in exchange for the rest of the week. Gave her sunny Sundays, food on the table, some of the finest wines, and nearly daily orgasms.
She’s like one of those Brazilian soap opera mothers-in-law, showing up in the backyard every single day just to ask how her son is doing.
Sometimes I try to outsmart her with those deep, deliberate breaths that summon every spiritual fibre we’ve got.
She gets dizzy. Doesn’t like it.
But neither do I.
I’ve lost my knack for disconnection.
I read a lot, and fast.
Sometimes she gets lost in a book too. Probably caught up in someone else’s sadness, just like I do—until she remembers who she is. Stands tall. Reclaims her vanity.
Because to be sadness, you can’t stop being sad.
The bitch even lets me close the book, gives me a breath between their stories and mine—
but she never lets me turn the corner.
She ambushes me, pins me down, and recites from memory that one paragraph that waltzes perfectly with my misfortune.
Another thing that fucks me over—and probably ages me—is the way she sneaks into the early hours, ruining countless dawns.
Eyes burning, incapable of crying, because they haven’t yet realised they’re already awake.
I plead for mercy.
To let me sleep.
To join me.
To turn into a proper nightmare if she must.
I’ll take waking up in tears.
But she never lets me despair.
Because despair would mean the sadness has reached an end.
She must be well-paid.
She’s been the cook of my days.
Never leaves a shift unfinished. Always serves everything hot.
She’s careful. Observant.
She lets it simmer but never burn.
So meticulous, always finding new ways to stir up the story, ensuring the host gets to cry from every possible angle.
The other day I was happy.
And I only realised it because I wasn’t sad.
If I hadn’t noticed, she would’ve left me alone.
But I always call her back to me.
We used to be friends.
We wrote poems together.
I’m sure I saw her sip from my glass of red.
Felt her press against my chest, expanding it with an embrace that made sure I never felt too small for the things I was about to feel.
But when you start sensing she’s there, curling up beside you,
nestling, foreshadowing—
She shakes you off.
Vanishes.
Snuffs out whatever light remains.
Gives you the full blackout.
Makes you dry your tears with your fingers.
Sniff back the snot of sorrow.
Straighten the spine molded to the armchair.
And it becomes unbearable to keep your knees pressed to your heart,
because your chest has swollen so much,
you need room to not explode with the weight of it.
One day I wrote that I felt sorry for sadness.
Because besides always being sad, everyone shoves her away, just hoping she doesn’t stay.
Almost no one tries to understand her,
even though she’s the one that helps us understand almost everything.
She was exiled by a ridiculous humanity that only welcomes good feelings.
If no one knows how to be ill anymore,
even fewer know how to be sad.
Mistreated by all, she has no choice but to become even sadder.
The chasm is wide between human anguish and our resolutions.
We destroyed the bridges that allowed us to cross from one side of ourselves to the other.
And the middle—that once-virtuous middle—
collapsed into the perfect landslide between man’s mud and the soul’s longings.
Why don’t we realise it’s the salt of tears
that scrubs our floor clean?
I suspect she didn’t like that essay where I tried to give her a break.
Ever since, I’ve had two shadows.
Now I just wait for some other poor soul to write her a more generous tribute,
so she might move on.
I think too much.
No doubt she feeds off that.
I’ve never seen sadness gain weight in empty glasses.
That madman Bukowski once said:
“Sadness is caused by intelligence. The more you understand certain things, the more you'd rather not.”
The Bible leaves a warning too:
“Increase your knowledge, and you increase your sorrow.”
There’s a twisted consolation in that.
Sadness comes from the nobility of deep thoughts.
The same stream that brings light,
also brings darkness.
“Those who eat from the fruit of knowledge are always expelled from some kind of paradise.”
I say that if I were simpler, I’d have fewer sadnesses.
But I lie.
Because then I’d be unable to delight in the heart of a great man,
or lock myself inside a book,
or drown in the foam of big metaphors,
or be undone by the smallness of a poem that says everything with so little—how?
I’d be unable to feel, running through my veins,
the chords of a sorrowful piano,
or sense, in the singularity of a look,
the density of a character.
Unable to look at trees and see green encyclopedias,
dancing for years in the wind,
witnesses to our downfalls,
oxygen to our convulsions.
How?
Which is the greater curse:
to accept that some chapters in life are dictated by sadness,
or to give yourself over to the vulgarity of a passing breeze,
living only to be blown around?
We’ll all choose intelligence.
But it’s not a choice we make—
it’s one we have.
Sadness has a gift that love despises.
Sadness is the one who straightens the sheets at night
so intelligence can lie down.
They whisper, swap secrets, stroke each other.
They hold late-night salons to fertilise doubts.
They conspire in the soul’s hollow spots.
They create their own light switches
that flicker sparks in the dark.
Sadness loves a restless mind.
It’s like conducting an orchestra of unruly musicians.
It can improvise anywhere.
Intelligence manufactures questions.
And sadness cashes in.
Intelligence carries a certain pride in knowledge.
And when it finds someone to talk to, it lights up,
nods its heavy head,
begs to keep going:
Invade me.
Enter me.
For God’s sake, ask me everything.
But don’t stop.
They say love kills reason.
That it doesn’t need it to believe.
In real love, there are no misers.
It’s all give.
I know we’ve been taking swings at sadness...
But love is another bastard.
Goes straight for the scalp of emotion.
Strips you bare.
Confiscates your clarity.
Spikes your adrenaline,
just to remind you that only fools fall in love.
But not the disheveled fools, tangled in their own madness,
the ragged, the lost, the broken.
Not the ones singing through bottle necks,
desperate for one last drop of emotion.
Not poor.
Not tragic.
I mean the fools with flair.
The ones who abandon bourgeois emotions
and choose love, always.
The ones who choose to live under a bridge,
so long as there’s a candle, a jug, and a flower.
Those are the ones we envy.
They are prisoners—
but say that if it's by choice, it doesn’t count.
It’s no surprise that, when we’re sad,
nothing feels more awkward
than the embrace of lovers.
Exiled as we are
from all embraces.
There’s no arguing with a heart in surrender.
You can bring in a choir of the rational,
cups of herbal tea,
all the wise counsel you want—
love doesn’t care.
And when it fails…
when it breaks…
when it goes bankrupt—
Sadness is the first creditor on the scene.
Intelligence, that bastard, slips into the cracks.
Pierces.
Drains reason.
And suddenly, all we want is a place to file all this unbearable clarity—
some desk somewhere where we can lodge complaints
for chronic sadness,
for thought abuse,
for continuous emotional harm.
But there’s no higher court.
Sadness has diplomatic immunity.
Intelligence, its fine print.
And love… love blocks the sender.
We’re left in the aftermath.
Sorting through what remains.
Trying, every single day,
to be happy
like someone trying to be on time
in a world where no one even knows what time is anymore.
And it’s in that mismatch that we carry on.
With souls that want to feel everything,
and bodies begging for a break.
With sadness cooking through the night,
intelligence pulling overtime,
and love, that bastard,
promising to return—
when there’s no one left waiting.
Isabel Saldanha
Epahhh! Que delícia! Vou ler outra vez....
Que coisa tão boa, como só a tristeza pode ser. Nao fosse ela a companheira de dias e noites e até daquele entardecer meloso do verão. Não sei se é mais triste sabermos que com ela vivemos, ou se acreditar que ela não está sempre connosco. Minto, acho que é a última hipótese. Mesmo assim, partilha-a connosco. Sei que ela não diminui com isso, mas ao menos a tua tristeza faz companhia à minha.