Tenho um coração com três moradas. Uma no centro do peito, outra bem instalada no cérebro e uma terceira, a mais antiga de todas, a que me trai sempre, mora no estômago. É um T2 interior com vista para o lume brando, com cheiro a cebola translúcida e sabor a redução de vinho do Porto.
Esta é uma carta de amor às receitas que me emocionam mais do que muitos poemas. Porque, numa outra vida — talvez naquela em que usava colar de pérolas, avental de linho e dizia “tempero q.b.” como quem revela um segredo — eu seria crítica culinária. Mas daquelas que não escrevem só sobre texturas e contrastes. Daquelas que fazem versos com o vinagre balsâmico, epifanias com suflés e dramas familiares com a açorda bem feita.
Hoje não venho falar (só) do coração. Venho falar do que o alimenta. Das receitas que me seguram. Das combinações sagradas que me salvam dos dias sem sol e sem sal. Da comida que me fala. Porque às vezes, mais do que um poema, o que precisamos é de um prato de migas de tomate bem feitas.
Vou dar-vos receitas, sim.
Mas em vez de quantidades, dou-vos imagens. Em vez de tempos de forno, dou-vos metáforas. E em vez de instruções, dou-vos desejos. Porque o estômago também sabe escrever.
Bochechas de porco preto (ou como lidar com a intensidade sem desmanchar tudo)
As bochechas de porco preto não se cozinham — domam-se. São a prova de que a doçura vem, muitas vezes, dos cortes mais rijos e mal-amados. Aquelas partes que a maioria descarta e que, no entanto, escondem uma ternura que só aparece sob pressão controlada.
O truque é deixá-las marinar. Dar-lhes tempo, espaço e um bom vinho tinto — porque ninguém amacia sem uma boa conversa e um grau alcoólico adequado. Junta-se cenoura, cebola, alho e a paciência de quem já percebeu que nada de bom se faz em lume alto.
Depois, sela-se a carne como quem diz: “Aqui ninguém me toca.” E só então é que se mergulha tudo no tacho, com os legumes e os caldos.
Fica ali a estufar, durante horas. A suar verdades. A engrossar os próprios sucos. E quando finalmente se abre o tacho — quando o garfo entra sem esforço e a gordura se mistura com os afectos — não há muito a dizer. Come-se. Em respeito. Com pão a sério para aproveitar o molho, porque a vida é curta demais para molhar em baguetes de plástico.
Este prato não precisa de drama. Só de tempo. E de batata frita a acompanhar, para lembrar que o intenso também tem que estalar antes de ceder.
Suflé de queijo
O suflé de queijo é o prato mais pretensioso da cozinha quente. Ar de elegância, interior em ebulição. Diz que é leve, mas leva manteiga, farinha, leite gordo, gemas, claras batidas até ao limite e um queijo ralado que, se tiver vergonha na cara, não vem do saco.
Começa-se com essa mistela de farinha e manteiga que parece erro de principiante mas é base de fundação. Junta-se leite quente devagar, mexendo com zelo e desespero, para não empelotar — porque não há nada mais irritante do que um suflé com grumos.
Depois, entra o queijo — e aqui não se aceita mediocridade. Ou é forte, curado, com personalidade e sal na alma, ou não vale a pena. Junta-se tudo às gemas, e por fim, com medo e respeito, envolvem-se as claras batidas em castelo. Sem violência, que isto não é um puré.
Vai ao forno com o mesmo suspense com que se espera a resposta a um convite enviado fora de horas. E depois é não abrir a porta. Nem espreitar. Nem respirar. Porque este prato vive de aparências.
E uma corrente de ar basta para o fazer colapsar em si mesmo.
Quando corre bem, cresce. Fica fofo, dourado, cheio de si. Dura cinco minutos antes de abater. Mas nesse curto intervalo, brilha.
Migas de espargos (ou como a rusticidade não tem nada a provar)
As migas de espargos não pedem desculpa por nada. Não têm medo de parecer secas, nem de cheirar a alho em público. São um prato do campo, com sotaque e com força, feito para quem acorda cedo e mastiga com intenção.
Tudo começa com espargos bravos — daqueles que picam a mão e o orgulho, se for preciso. Cortam-se à mão, com alguma violência, como quem desbasta. Depois, azeite no fundo da frigideira, alho em rodelas e um lume que se respeita. Os espargos entram sem cerimónia, estalam, queixam-se, libertam o verde.
O pão — do dia anterior, duro como a realidade — é cortado miúdo e mergulhado em água. Não é para amolecer, é para preparar a transformação. Porque migas boas não são feitas de pão mole, são feitas de pão rendido.
Vai tudo para a frigideira. Mexe-se com colher de pau, com paciência e pulso. As migas não se fazem sozinhas nem com pressa. Vão-se formando devagar, ganhando corpo, agarrando os sabores à força de fricção e de calor. Ficam douradas por baixo, quase crocantes. Por cima, verdes e suadas.
As melhores migas de espargos não pedem acompanhamento. São suficientes. E se não forem, o problema não está no prato.
Cabrito assado no forno
O cabrito assado no forno não é prato de gente apressada. É daqueles amores que só florescem depois de muito tempo ao lume, de muitas hesitações, de muito alho a falar grosso e do louro a murmurar conselhos.
Começa-se por temperar a carne na véspera. Como quem escreve uma carta que nunca vai enviar. Alho esmagado com raiva, vinho branco com mágoa, azeite com fé. E sal — q.b., como tudo o que se quer manter vivo mas não em demasia. Junta-se o louro, o cravinho, um toque de pimenta e a certeza de que vai doer antes de ficar bom.
Depois, mete-se ao forno. Baixo. Lento. Quase cruel. Três, quatro horas de silêncio e de espera. Um amor que exige presença sem pressa. Vai-se regando de vez em quando, como quem pergunta: “Estás bem?” sem querer ouvir a resposta.
Quando o cabrito começa a desprender-se do osso com a leveza de quem já sofreu tudo o que tinha a sofrer, está pronto. A pele estaladiça, a carne macia, o cheiro a domingo. Não se corta — desfaz-se. Como um orgulho depois de uma reconciliação.
Serve-se com batatas que absorveram tudo o que ele largou, como bons amigos que ouvem sem julgar. E come-se em silêncio. Porque há sabores que só discutem de boca fechada.
Açorda de tomate (ou como fazer poesia com pão velho e tomates a rebentar)
A açorda de tomate é o prato que responde “estou-me nas tintas” às regras de etiqueta. É molhada, desbocada, chega à mesa a fumegar palavrões. E no entanto, é das coisas mais acolhedoras que se pode enfiar numa colher.
O segredo está no tomate. Maduro. A cair de maduro. Vermelho indecente. Cortado aos pedaços e atirado para um refogado honesto, com cebola, alho e azeite generoso. Não se reduz a polpa. Não se passa. Rebenta. Ferve. E espirra acidez e doçura em partes iguais.
Depois junta-se a água. Sim, água. Nada de caldos de peru com trufas. Aqui, ou se faz com simplicidade, ou não se faz. O pão entra de rompante — velho, alentejano, com côdea, sem mimo. Rasgado à mão como se rasgam folhas que já não servem.
E os ovos, escalfados, são lançados inteiros para dentro do caos, onde escalfam lentamente, fingindo dignidade. A clara firma, a gema fica líquida, e quando a colher a rasga, é pornografia pura.
A açorda de tomate é o tipo de prato que não se apresenta. Impõe-se. E quem não gosta, que vá comer tostinhas.
Lagartos de porco preto (ou como o nome engana mas o sabor redime)
Lagartos. Chamam-se assim, não se sabe bem porquê. Talvez porque se retorcem na frigideira como répteis em fuga, ou porque o nome tira glamour ao facto de serem tiras suculentas da zona entre o lombo e as costelas do porco preto.
Tempero? Sal, alho, pimenta e limão. Nada de mariquices. Os lagartos não precisam de molho, precisam de brasa. Ou, em alternativa, de uma frigideira de ferro fundido que já tenha visto guerra. Aquecida até começar a fumar insultos.
Vão para a chapa e ganham cor por fora, mantendo o suco por dentro. Ficam caramelizados, ligeiramente tostados, como quem passou por um aperto e saiu com mais sabor.
Acompanhamento? Batata frita de verdade ou uma salada para os mais culpados. Mas o essencial é o pão — para empurrar, raspar e limpar o que sobra. Porque este prato não se deixa nada no prato. E quem deixa, não é de confiança.
Desta vossa faminta e refogadora de palavras,
Isabel Saldanha
Talvez o texto mais delicioso que já li! Obrigada pela partilha!
São 08h50 e já me apetecia ir para a cozinha namorar com as bochechas e migas, que vontade de saborear cada prato descrito pela Isabel.
Que delicia de palavras, tao saborosas.